Vivemos a quarta revolução industrial e, além de adotar novas tecnologias, as empresas precisam passar por uma profunda mudança cultural.
*Por Renato Cruz | Foto: iStock
Leva algum tempo entre o surgimento de uma tecnologia e a descoberta do melhor uso que podemos fazer dela. Um caso curioso é o da comida enlatada, citado no livro A evolução das coisas úteis, de Henri Petroski. As latas para conservar e transportar alimentos foram uma solução criada em 1810 por Peter Durand, um comerciante de Londres. Ele aperfeiçoou uma técnica do francês Nicolas Appert, que usava garrafas. Ao contrário dos recipientes de vidro, as latas de ferro poderiam ser transportadas sem risco de quebrar por soldados ou pela Marinha Real Britânica.
Com o surgimento dos enlatados, a invenção do abridor de latas parece óbvia, pelo menos para nós, que vivemos hoje. Mas não foi isso o que aconteceu. Passaram-se mais de 50 anos até que o abridor fosse inventado. Na década de 1850, o ferro foi trocado pelo aço como matéria-prima, o que reduziu o peso e trouxe mais flexibilidade aos enlatados. E somente em 1858 o norte-americano Ezra Warner registrou a patente do primeiro abridor de latas. Antes disso, as pessoas usavam facas, martelos, baionetas e até tiros para abrir os enlatados.
Esse é só um exemplo de como levamos algum tempo para descobrirmos a melhor forma de usar uma tecnologia. Vivemos atualmente a quarta revolução industrial, em que as empresas se tornam mais inteligentes, com tecnologias como internet das coisas, computação em nuvem, big data, manufatura aditiva e aprendizado de máquina sendo integradas à automação que caracterizou a revolução anterior.
Nesse cenário, o grande desafio é a mudança cultural. Não adianta adotar novas ferramentas, integrar tecnologia da informação e tecnologia operacional, sem modificar a forma como as pessoas trabalham. Em primeiro lugar, o cenário atual exige equipes cada vez mais heterogêneas, tanto em sua formação quanto em suas vivências pessoais.
O cientista de dados, que antes ficava próximo das equipes de negócios, começa a ser requisitado na produção. Com a internet das coisas, as máquinas passam a gerar um volume crescente de informações, que precisam ser analisadas em tempo real. O sistema de gestão gera dados que alimentam a fábrica e vice-versa. As equipes de TI e de operações trabalham lado a lado.
Outro conceito que ganha importância em todos os setores da empresa é a diversidade, seja de gênero, raça, orientação sexual ou formação educacional. Equipes homogêneas tendem a cometer sempre os mesmos erros e, se quiserem ser realmente inovadoras, as empresas precisam estar abertas a cometer erros novos.
De volta ao chão de fábrica
Um livro referência entre empreendedores é A startup enxuta, escrito por Eric Ries. O autor descreve um método de análise contínua do mercado para apoiar o desenvolvimento de produtos. Ele usa a palavra enxuta no título porque uma de suas fontes de inspiração foi o Sistema Toyota de Produção, idealizado pela empresa japonesa em meados do século passado para aumentar a produtividade e a eficiência de suas fábricas.
No setor de software, foram criadas no começo deste milênio metodologias ágeis para reduzir o tempo de desenvolvimento e tornar o produto mais próximos das reais necessidades dos usuários, com ciclos menores de programação. Apesar de os métodos não serem os mesmos da Toyota, a mentalidade é bem próxima. Com o tempo, essas metodologias passaram a ser aplicadas nas mais diversas áreas das empresas. A transformação digital depende da agilidade de toda a operação, o que, de certa forma, é uma retomada e uma ampliação das ideias desenvolvidas pela Toyota no século passado.
Como estamos
A indústria brasileira ainda tem um grande caminho a percorrer para a sua transformação digital. Em paralelo com a questão cultural, as empresas brasileiras ainda enfrentam obstáculos na adoção da tecnologia.
Segundo o Projeto Indústria 2027, somente 1,6% das companhias nacionais adota atualmente tecnologias digitais avançadas. Em dez anos, esse percentual deve subir para 21,8%. Apenas 15,1% das companhias ouvidas têm projetos em execução para incorporar tecnologias digitais de última geração. A maioria delas (45,6%) realiza estudos iniciais ou tem planos aprovados sem execução, enquanto 39,4% não têm nenhuma ação prevista nessa área.
A pesquisa considerou os seguintes estágios tecnológicos digitais:
- Produção rígida, com uso pontual de tecnologias da informação e comunicação (TIC) e automação rígida e isolada;
- Automação flexível ou semiflexível, com uso de TICs sem integração ou integração apenas parcial entre áreas da empresa;
- Uso de TICs integradas e conectadas em todas atividades e áreas da empresa.
- Produção conectada e inteligente, com tecnologias da informação integradas, fábricas conectadas e processos inteligentes e capacidade de subsidiar gestores com informações para tomada de decisão.
Educação e mercado de trabalho
O estudo mostrou que 77,8% estão nos estágios 1 e 2. Em dez anos, no entanto, a maioria deve passar para 3 e 4. A pesquisa ouviu 759 médias e grandes empresas entre junho e novembro deste ano.
O Projeto Indústria 2027 é uma iniciativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), em parceria com as universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Estadual de Campinas (Unicamp).
Outro estudo, feito pela Dell em parceria com a Intel, mostrou um quadro semelhante, em que somente 6% das empresas brasileiras de médio e grande porte podem ser consideradas líderes digitais. Apesar de poucas estarem prontas, 37% contam com um plano digital maduro e fazem investimentos em inovação e 33% investem de forma gradual e com maior cautela.
As empresas brasileiras que se movem muito lentamente são 22% e 2% não contam sequer com um plano digital. Conduzida pela Vanson Bourne, a pesquisa ouviu 4,6 mil grandes e médias empresas em 42 países, incluindo o Brasil.
Educação e mercado de trabalho
O Brasil fechou 2018 com 12,2 milhões de desempregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mesmo assim, existem 250 mil vagas para profissionais de tecnologia no País, com dificuldade de serem preenchidas. Se nada for feito, o problema tende a se aprofundar, com trabalhadores no mercado que não estão preparados para ocupar as posições disponíveis nas empresas.
A transformação digital exige profissionais bem preparados para trabalhar com ferramentas tecnológicas sofisticadas. Mesmo o mais avançado sistema de inteligência artificial não consegue fazer tudo sozinho. Não conseguiremos resolver a questão da produtividade da economia brasileira sem educação e treinamento.
Um estudo recente da consultoria McKinsey mostrou que a possibilidade de trabalhadores humanos serem totalmente substituídos por robôs afeta menos de 5% das profissões. Mas, se analisarmos as atividades desempenhadas por um profissional em seu dia a dia, esse percentual alcança 50%, com as tecnologias que existem hoje.
Ou seja, a tendência é que as pessoas cada vez mais tenham de trabalhar ao lado de robôs, que podem existir fisicamente ou ser um sistema de software. O relatório da McKinsey aponta que essas atividades que podem ser exercidas hoje por máquinas equivalem a quase US$ 16 trilhões em salários em todo o mundo.
Diante desse cenário, é urgente que as empresas mudem a forma como trabalham, e que haja um esforço que envolva iniciativa privada, governo e academia para prepararmos pessoas suficientes para a transformação digital.
Referências
- Cruz, Renato. “Ainda falta muito para a transformação digital”. Inova.jor, São Paulo, 18 jan. 2019.
- Instituto Euvaldo Lodi. Indústria 2027 – Volume 1 – Disruptive technologies and industry: current situation and prospective evaluation. Brasília: IEL, 2018.
- McKinsey Global Institute. A future that works: automation, employment, and productity. McKinsey. San Francisco, 2017.
- Petroski, Henri. The evolution of useful things. New York: A. Knopf, 1992.
- Ries, Eric. A startup enxuta. São Paulo: Leya, 2002.