Maior investimento brasileiro em ciência – aproximadamente 2 bilhões de reais – o acelerador de partículas Sirius integra um superseleto time dos laboratórios considerados de quarta geração. Com números majestosos, será capaz de produzir dez mil vezes mais brilho que o seu antecessor
*Por Denise Marson | Foto: Renato Pizzutto
Nos primeiros dias de agosto deste ano, havia um misto de entusiasmo e tristeza no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que fica dentro do Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais (CNPEM), em Campinas, SP. Tudo isso porque o importante capítulo inicial de sua história, com duração de mais de 30 anos, estava prestes a ser encerrado: o UVX, o acelerador de partículas que deu origem ao LNLS e ao próprio CNPEM, seria desligado. Ao mesmo tempo um novo e empolgante estágio tecnológico está prestes a iniciar seu legado: o Sirius.
Batizado com o nome da “estrela mais brilhante do firmamento”, o Sirius deverá justificar sua alcunha ao gerar uma luz síncrotron com brilho dez mil vezes maior que o do seu antecessor. Esse notável avanço permitirá que sejam feitos experimentos em nível inédito no País e, em alguns casos, no mundo, pois a alta energia gerada pelo novo feixe de luz permitirá a concentração do feixe de raios X em um foco que poderá chegar à ordem do micrômetro e até do nanômetro – como base de comparação, no UVX, era possível analisar apenas uma camada mais superficial de determinados materiais. Os novos recursos poderão permitir, entre outras aplicações, análises de rochas para exploração do pré-sal, entre outros estudos, com uma precisão mil vezes maior que a de uma tomografia hospitalar, por exemplo.
O Sirius integra o seleto time das fontes de luz síncrotron de quarta geração. Junto com ele estão apenas o Max IV, da Suécia, que entrou em operação em 2016, e quando finalizado, o ESRF da França. Além dessas, outras 13 de quarta geração estão em fase de planejamento. No geral, há mais de 50 em funcionamento no mundo em pouco mais de 20 países, principalmente no Japão, Estados Unidos e Alemanha.
A entrega da primeira etapa, ocorrida em novembro de 2018, deu seguimento a uma história de coragem, ousadia e determinação que começou em meados da década de 80, quando começaram os pré-projetos que culminaram com a construção do UVX – desde aquela época, já considerado o maior investimento feito em Ciências no Brasil. Sua trajetória sempre esteve intrinsecamente ligada à vida do engenheiro e físico Ricardo Rodrigues, que também esteve à frente quando do salto da máquina de segunda geração para uma de quarta. “O projeto inicial era de fazer uma máquina de terceira geração e, então, o comitê avaliou que todos no mundo já estavam pensando em quarta. Em um mês, refizemos todo o projeto de óptica da máquina e mudamos a câmara de vácuo, que precisava ser de cobre. Foi um bom aquecimento. Hoje temos uma máquina melhor que a do Max IV”, orgulha-se Rodrigues.
Estrutura e pesquisas
A entrega da primeira etapa do Sirius ocorreu em novembro de 2018, quando foi finalizada a primeira etapa do projeto, que englobava a conclusão das obras civis do prédio que abrigará as pesquisas e a montagem dos dois primeiros aceleradores de elétrons (ele é formado por três aceleradores). A estrutura tem 68 mil m2 com padrões altíssimos de estabilidades mecânica e térmica: foi construído um piso em peça única de concreto armado com precisão de nivelamento de menos de 10 mm e a temperatura não pode variar mais que 0,1 grau Celsius.
A segunda etapa do projeto envolve o início das operações no Sirius, com a abertura das seis primeiras estações de pesquisa para a comunidade científica – o que está previsto para 2020. O equipamento poderá comportar até 38 estações experimentais, sem contar com possíveis upgrades, que foram considerados em seu projeto.
O uso do laboratório é aberto às comunidades acadêmica e industrial e só envolve custos caso a empresa queira sigilo para os resultados obtidos em suas pesquisas. Novos projetos devem ser submetidos a um comitê que os avalia duas vezes ao ano.
A usinagem no CNPEM / LNLS
Com o mesmo tempo de vida que o LNLS, a oficina de usinagem foi criada para dar suporte às necessidades do acelerador de partículas, principalmente para a produção interna dos protótipos. “Desenvolvimento é algo complicado: nem sempre é a primeira ideia que dá certo”, justifica o engenheiro João Roberto Costa, coordenador da oficina. E, ao que tudo indica, as ideias estão fervilhando por lá: de janeiro até fim de julho, Costa contabilizou 2.600 pedidos (ordens de serviço).
No espaço, que conta com 17 funcionários e um parque de máquinas com menos de 15 exemplares, entre máquinas convencionais, furadeiras, fresadoras, tornos e centros de usinagem, são feitos protótipos para peças de alta complexidade. “Conforme o projeto foi ganhando investimentos, foram adquiridas novas máquinas como centros de usinagem de quatro e cinco eixos especificamente para o projeto do Sirius. Também há uma máquina de corte a laser e uma dobradeira. Todas para peças de precisão”, explica Costa.
Para o novo acelerador, o coordenador explica que a exigência passou a ser de peças mais complexas e ainda mais precisas. “A tolerância passou a ser ainda mais apertada como, por exemplo, em peças no monocromador ou do monitor de posição. Em ímãs especiais, a tolerância é de 5 mícrons”, cita Costa. Outras peças produzidas internamente foram os chamados cálibres para alinhar a máquina, que são de alta precisão. “Poderíamos comprar ou fazer internamente e decidimos assumir esse desafio de fazer aqui”.
Segundo Costa, a oficina do LNLS é uma “fábrica de protótipos”. “Os físicos têm suas ideias e nós projetamos e fabricamos. Não temos produção em série, pois a cada hora estamos fazendo algo diferente e aí que está a graça”, define. Nesse contexto, ele destaca a relação e a parceria com os fornecedores e fabricantes de ferramentas de corte.
Recentemente, uma solução apresentada pelo distribuidor autorizado da Sandvik Coromant na região de Campinas – a I9 Ferramentas – foi testada para a usinagem de uma peça em aço inoxidável. Com o uso da tecnologia PrimeTurningTM, a operação de torneamento que necessitava de três ferramentas passou a ser executada com apenas uma. Além disso, o tempo de usinagem foi reduzido de 15 para 5 minutos. “Ainda não tivemos uma aplicação tão grande, mas fizemos um desenho de uma peça-base, com raios, desbastes, chanfros e acabamento”, descreve Costa. “Acredito que esta ferramenta seja uma revolução no processo de usinagem. A parceria com um fabricante de ferramentas como a Sandvik Coromant é muito importante. A I9, por exemplo, sempre traz as novidades para que possamos fazer os testes em nossa usinagem. Com isso, todos saímos ganhando.”
O que é a luz síncrotron e para quê serve?
Segundo definição do LNLS, a luz (ou radiação) síncrotron é um tipo de radiação eletromagnética de alto fluxo e alto brilho que abrange uma faixa ampla do espectro, o que inclui a luz infravermelha, a radiação ultravioleta e os raios X. A luz é produzida pela aceleração de partículas carregadas (elétrons), quando sua trajetória é desviada por meio de curvaturas produzidas por uma detalhada estrutura de ímãs, criando campos magnéticos precisamente calculados.
De forma bastante simplificada, as fontes de luz síncrotron funcionariam como poderosíssimos microscópios que permitiriam um estudo aprofundado de materiais por praticamente todas as áreas do conhecimento: física, química, engenharia de materiais, nanotecnologia, biotecnologia, farmacologia, medicina, geologia e geofísica, agricultura, oceanografia, petróleo e gás, paleontologia, entre outras.
As principais partes do Sirius podem ser vistas na ilustração abaixo:
1. Acelerador linear (linac)
Estágio inicial onde os elétrons são injetados e acelerados a velocidades próximas à da luz. De lá, são conduzidos ao acelerador injetor por uma linha de transporte composta por ímãs.
2. Acelerador injetor (booster)
É um acelerador circular que visa aumentar a energia dos elétrons. Ao final, são transportados ao anel de armazenamento por outra linha de transporte.
3. Anel de armazenamento
Quando estão carregados com alta energia e têm suas trajetórias desviadas, os elétrons produzem a radiação de amplo espectro magnético e alto brilho (luz síncrotron). Daqui saem as linhas de luz.
4. Rede magnética
Responsável por defletir e focalizar o feixe de elétrons, definindo sua trajetória.
5. Linhas de luz
São as estações experimentais para as quais a luz síncrotron é guiada. A radiação passa pelas amostras a serem analisadas e permite as medições necessárias em cada projeto. As fontes de luz síncrotron permitem o uso de técnicas como espectroscopia do infravermelho ao raio X, espalhamento de raios X, cristalografia, tomografia e outras.
Um sonho construído em partículas
A história de Antonio Ricardo Droher Rodrigues, mais conhecido como Professor Ricardo, está entrelaçada com a do LNLS. Dos seus 68 anos de vida, aproximadamente metade deles foi dedicada ao trabalho com a fonte de luz síncrotron da cidade de Campinas – da qual é um dos fundadores. Engenheiro civil, natural de Curitiba (PR), fez doutorado em Física na King’s College, na Inglaterra, ainda no final da década de 70. “No início, eu até fui meio contra. Acreditava que esse tipo de laboratório iria drenar todos os recursos do Brasil: quase duas ordens de grandeza maior do que qualquer outro investimento que já tinha sido feito em Ciências”, relembra.
Mas não demorou muito tempo para que fosse convencido da ideia pelo professor Roberto Lobo, da USP de São Carlos. À época diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), Lobo fez um grande estudo sobre a Física no Brasil e chegou à conclusão de que o País deveria ter um laboratório nacional.
De cético, o Professor Ricardo passou para o time dos defensores ferrenhos e, junto com outros três jovens cientistas, partiu para o Stanford Synchrotron Radiation Laboratory (SSRL), da Universidade de Stanford (EUA), com objetivo de desenvolver o projeto de uma fonte de luz síncrotron para o Brasil. “Não tinha ninguém que sabia fazer isso aqui no Brasil e fomos lá aprender”, relembra. Naquele grupo estava a pesquisadora Liu Lin, que hoje lidera a equipe de Física, com quem viria a se casar.
Dali para a inauguração do primeiro acelerador de partículas (UVX) e, consequentemente, do LNLS, foram dez anos de construção. “Na época, quando começou, eu achava que seria muito tempo, mas passou tudo muito rápido”, conta Rodrigues, sem esconder sua nostalgia.
Seu ‘casamento’ com o LNLS parecia perfeito quando, em 2001, decidiu sair da instituição. Voltou a convite, em 2009, já com o desafio de construir a nova fonte de luz síncrotron: que seria de quarta geração.
O dia em que nossa reportagem esteve visitando o LNLS seria o seu último dia de atividade do UVX – o que lhe causava certo sentimento de tristeza. “Acho que ele merecia uma cerimônia de despedida.” Uma estrela nasce e outra se apaga.