Reflexões sobre os significados por trás dos avanços da indústria mundial
*Por Vera Natale, Editora OMU
Temos visto inúmeros eventos e fóruns de discussão sobre a digitalização da indústria, o que mostra a grande relevância do tema, especialmente porque já estamos vivendo e sentindo na pele a onda de mudanças no atual mundo da manufatura. O “Digital Transformation para a indústria”, promovido recentemente pela Dassault Systèmes, multinacional francesa líder mundial na criação de softwares de desenho em 3D, prototipagem em 3D e soluções para PLM (Product Lifecycle Management), foi um deles e cativou a atenção pelas reflexões que nos propôs.
O evento reuniu, no Hotel Unique em São Paulo, um seleto grupo de 65 pessoas de diversos segmentos da indústria e trouxe à tona discussões importantes sobre a influência da transformação digital na competitividade, os desafios e as oportunidades, bem como as soluções já praticadas não apenas pela empresa anfitriã, bem como pelos seus convidados e parceiros, em âmbito global e local. Entre eles, Flavio Lima, gerente geral LATAM de sistemas automotivos e plataformas de engenharia da Renault, Celso Placeres, diretor de manufatura da Volkswagen Brasil, Anita Dedding, gerente divisional de tecnologia da Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos), e o economista Eduardo Giannetti.
A palestra inaugural de Giannetti sobre “As perspectivas da economia para o setor industrial em 2018” antecipou a principal preocupação das palestras e argumentações seguintes – como inserir a indústria brasileira no contexto 4.0, que caminhos nosso empresariado deve seguir? Depois de dez longos trimestres em crise, já se pode afirmar que o Brasil saiu da recessão. No entanto, essa recuperação é lenta e diferenciada entre os diversos segmentos da indústria. O setor de bens de capital por exemplo, ainda exibe índices bem baixos – com investimentos na casa de 16% do PIB.
Essa recuperação cíclica, segundo o estudioso, é bem diferente de crescimento sustentável com visão de longo prazo e que ainda não se iniciou, pois requer, no mínimo, mudanças estruturais nas áreas da educação, saúde, segurança, saneamento e infraestrutura; reforma tributária em prol do que ele chama de cidadania fiscal; e um novo posicionamento do país frente às demandas de mercado global.
Na ótica de Giannetti, seguir o caminho da inovação não é por si só sustentável, pois a concorrência sempre estará à espreita para criar soluções que superem as suas inovações recém-desenvolvidas. Precisamos mesclar a estratégia da inovação à estratégia de maior integração comercial, o que pode nos fazer migrar de país de renda média para o patamar de países desenvolvidos, de alta renda. “Ainda somos um país fechado. Precisamos vender mais para o mundo e comprar mais do mundo”. O prognóstico final dele, desde que as lições de casas sejam revistas e devidamente executadas, é de que o Brasil se torne no futuro um país voltado a exportar não apenas commodities, mas serviços e tecnologia.
Conectar, interagir e repensar
As palestras seguintes de Jean Marie Durand, vice-presidente técnico da Dassault Systèmes, “From Digital Transformation to Business Transformation: aumentando a competitividade por meio da digitalização das operações industriais”, e de José Roberto Egreja, responsável por Business Transformation, “Um dia na vida de uma indústria digital”, mostraram ao público teoria e exemplo prático da solução 3D Experience. A plataforma tem mais de dez mil usuários em 56 países, usada por empresas de grande a pequeno porte, conecta toda a cadeia de produção; promove a colaboração entre times; fornece dados reais do processo evitando riscos, retrabalhos e problemas de qualidade; e aumenta a tão desejada produtividade com garantia de processos mais enxutos e mais qualidade ao produto final.
Flavio Lima expôs as soluções da Renault para atender, sobretudo, às deliberações mundiais referentes à redução das emissões de CO2, bem como às necessidade das novas gerações de consumidores, os nativos digitais, para os quais importa mais ter um smartphone do que um carro. Frisou igualmente o quanto essa realidade afeta a “nova” indústria automotiva por assim dizer, seja em seus processos produtivos, seja em sua forma de fazer negócios — um desafio e tanto, mas sem dúvida uma grande oportunidade para novos negócios. “Hoje temos 1.7 bilhões de usuários de smartphones, em 2020, teremos 6 bilhões, sendo 2/3 desse montante só nos países emergentes”.
Essas demandas impactam diretamente a indústria automotiva que já tem em seu escopo, e cada vez mais, a produção de carros elétricos, híbridos e autônomos, hiper conectados, bem como a oferta de serviços de car sharing, por exemplo. E ainda vão além — ultrapassam as fronteiras da indústria, permeando toda a cadeia de valor. Lima comentou da premente necessidade de remodelar a infraestrutura das cidades para oferta de estradas preparadas para condução autônoma, pontos de carregamento e respectivas regulamentações, novos modelos de distribuição de energia elétrica etc.
Ficou claro aos participantes que a palavra de ordem dessa transformação digital é Conectividade. Porém, há necessidade de se criar uma nova mentalidade de negócios, em que o foco de atenção não se centre apenas no
investimento e na implantação das novas tecnologias digitais em si, mas em todos os benefícios que proporcionam como os almejados maiores ganhos de produtividade e maior eficiência operacional.
Também se tornou imperativo capacitar os profissionais, sejam os novos ou os que já atuam na indústria da manufatura, para fazer o melhor uso dessas novidades tecnológicas digitais. Ambas as montadoras já atuam junto às universidades do país em prol de mudanças nas grades curriculares dos novos cursos técnicos, e também na oferta de cursos de extensão para atualização dos já formados.
Anita Dedding pontuou que a Abimaq, com sua habilidade de articulação junto ao Governo e às universidades, também tem interferido para a mudança das grades curriculares de instituições como SENAI, FEI e Instituto Mauá, por exemplo, com foco nas novas aptidões que o mercado vai demandar.
Outra iniciativa da entidade, nessa direção de aprimorar as competências dos profissionais da indústria, é a idealização do projeto batizado MOVI (da palavra “movimento”), focado em aproximar as startups para trabalhar em conjunto com as indústrias tradicionais. O propósito é gerar benefícios de mão dupla: para as indústrias ditas “tradicionais”, maior agilidade nessa transformação digital; e para as startups, por sua vez, a possibilidade de identificar novas necessidades e oportunidades, promovendo suas soluções tecnológicas e novos processos. “A ideia é que as startups ocupem os gaps (lacunas) que essas empresas apresentam, acelerando o processo de digitalização. (…) O papel da Abimaq é cuidar dessa comunicação e interação para aproximar os dois lados, diminuindo barreiras”, afirmou a gerente.
Por onde começar?
Todos os participantes do painel que encerrou o encontro — Anita Dedding/Abimaq, Flavio Lima/Renault Brasil, Celso Placeres/Volkswagen Brasil com mediação de Egreja/Dassault Systèmes — foram praticamente unânimes em afirmar que a digitalização da indústria, base da Indústria 4.0, é um caminho sem volta. E traz, em igual peso, oportunidades de novos negócios/mercados bem como desafios: a capacitação sendo um deles, o entendimento e a adequação dessas tecnologias à realidade da sua fábrica, independentemente do porte, aliado à integração com os demais pares da cadeia, outros fatores não menos importantes.
Melhor explicando, de nada adianta implementar novas tecnologias conectadas, para ficar alinhado às tendências 4.0 globais, sem antes rever o que de fato é mais adequado para alavancar a competitividade. Revisitar processos para analisar o que é necessário, a capacidade do seu negócio, bem como onde se pretende chegar e o que se quer alcançar. Parece básico, mas é fundamental. Celso Placeres, da Volkswagen, foi feliz em sua colocação: “Nós precisamos desmistificar a Indústria 4.0. Ela não é só robô, não é só automação. Você pode ganhar produtividade e competividade em postos manuais, fazendo por exemplo, um poka-yoke [à prova de erros, em japonês]”.
Ou seja, em determinados momentos, aplicar uma ferramenta de gestão como o pokayoke, criado na década de 1960 pelo Sistema Toyota de Produção e que impede que erros se transformem em defeitos lá na frente, ainda pode ser surpreendentemente eficaz. Uma solução barata que minimiza desperdícios e retrabalhos e gera, portanto, redução de custos. A Abimaq, que representa cerca de 7.500 empresas, tem proposto diversas iniciativas no sentido de desmistificar o conceito da Indústria 4.0.
Anita Dedding diz que a maior preocupação da entidade é traduzir conceitos em atividades práticas. As feiras são uma ótima vitrine, nesse sentido — já apresentaram, em 2016 e 2017, uma célula de manufatura avançada em que tiveram que empreender o conceito de engenharia compartilhada entre as empresas que integraram o projeto e que repercute positivamente até hoje. “Falamos que nossa indústria é defasada e conservadora, mas ela precisa ser desafiada. E as empresas têm mostrado interesse em mudar esse cenário”.
Flavio Lima, da Renault, também sustenta que “a grande questão não é mergulhar de cabeça e ver a IoT (Internet of Things – Internet das Coisas) como uma panaceia. Temos que racionalizar. Antigamente, um sensor colocado em uma máquina para medir vibrações, fazer análise e manutenção preventiva custava 5 ou 6 mil dólares. Hoje, eu posso colocar 5 mil sensores, cada um custando 1 dólar, gerar uma nuvem de dados e, a partir dessa nuvem, ter insights para fazer uma melhor manutenção”. Porém, o executivo frisa que precisamos estar integrados: “Não adianta o grupo Renault modernizar suas fábricas se os fornecedores não estiverem juntos; se as universidades não conseguirem preparar as pessoas; se as cidades não estiverem preparadas. Temos que pensar do micro para o macro e ver o que é mais adequado. Temos, sem dúvida, oportunidades. (…) O grande problema é saber usar essas tecnologias de forma racional”.
O pulo do gato
Nota-se que essa conscientização do que realmente significa a Indústria 4.0, fundada na digitalização, e de como se inserir nesse contexto na prática, considerando a realidade de cada um no palco da manufatura, ainda é o primeiro passo rumo à maior competividade e ao crescimento sustentável que pode vir por tabela.
Celso Placeres, da Volkswagen, ainda pondera: “As tecnologias digitais ficam cada vez mais baratas, mais velozes e mais eficientes. Viraram commodities e os robôs são só um exemplo. Vai sair na frente quem conseguir usar essas tecnologias na renovação natural de seus processos seja qual for o seu negócio. (…) Vai sair na frente quem tiver a tecnologia e o discernimento para usar essas tecnologias de maneira smart, buscando, passo a passo, a digitalização de seu processo”.
Jose Egreja, da Dassault, concorda com os pontos apresentados, e lança uma provocação: “Todos esses conceitos ‘Vale do Silício’, próprios da Era 4.0 da indústria, são ótimos. Mas a indústria brasileira ainda está numa fase de experimentação, descoberta — qual tecnologia ou conceito será melhor para o meu negócio; que mudança eu vou implementar ou não — fazer a reinvenção completa do negócio ou uma mudança significativa de um processo core. Investir alto e em larga escala junto com uma startup ou não?”. Eis a questão!
Para ele, outro aspecto ainda pouco discutido diz respeito ao entendimento do que essa nova realidade nos propõe em seu âmago — o repensar a mentalidade, as estratégias, adequá-las ao seu processo, sem ferir o core (a essência) do seu negócio e obviamente considerando as pessoas no papel de protagonistas.
“A transformação digital tem que levar em consideração a interação da tecnologia com as pessoas, não só do ponto de vista daquelas tarefas que podem ser automatizadas, mas também em complementação e expansão de tarefas que podem ser realizadas pelo ser humano com o apoio dessa tecnologia. Onde ela pode ajudar, melhorar, complementar ou até mesmo criar mais oportunidades aumentando a responsabilidade e o escopo de trabalho das pessoas nos seus postos de trabalho”, finaliza.
As ricas discussões que o evento nos proporcionou nos levam a crer que a tecnologia, os ecossistemas conectados são o meio, não o fim dessa revolução! E as pessoas ainda ocuparão papel central, seja nas discussões, seja no próprio processo de mudança como agentes da transformação.